quinta-feira, 20 de agosto de 2009

UMA QUESTÃO VITAL


Um dos grandes desafios para a moral cristã atualmente diz respeito diretamente à valorização da vida humana em sua integralidade.
O homem moderno vive num mundo amplo e complexo, que o faz testemunhar um avanço cada vez mais acelerado da ciência e da tecnologia, pontos que tocam diretamente na questão dos valores e sua hierarquia. A grande pergunta que emerge é justamente sobre o grau de importância atribuído à vida dos seres humanos, já que a mesma parece ser importante apenas como meio para promover uma sociedade onde o centro das atenções não reside mais no próprio ser humano. É neste ponto que surgem os problemas, pois a moral cristã leva-nos à afirmação de que no mundo a vida de cada homem ou mulher está no mais alto grau da escala axiológica, sobretudo tomando por base a Sagrada Escritura e de modo mais direto o Evangelho. Deve-se considerar ainda que dentre os mandamentos de Deus, um deles anula quaisquer possibilidades de recusa do referido valor. O “não matarás” é bem claro e dispensa maiores explicações.
É preocupante quando os rumos da sociedade deixam de considerar este princípio. Sem recair num pessimismo absoluto, a realidade é bastante eloqüente neste sentido, pois os rumos ou tendências da economia, da política, da educação, da justiça e de tudo o mais que constitui a realidade humana ou seu espaço vital nos fornecem dados seguros para a afirmação antes apresentada.
Não foge de nossa consciência a certeza de que o Evangelho é uma proposta com incalculável potencial humanizador. Por outro lado, sem negar o valor e a importância contidos na evolução da ciência e da tecnologia, emerge a consciência de que os mesmos já não são mais capazes de suprir as necessidades indispensáveis para a realização humana. Esta postura não caracteriza um “conservadorismo” extremo, sem fundamento ou inadequado, mas a afirmação tradicional de valores capazes de garantir e oferecer aos homens e mulheres do tempo presente elementos que lhes são inerentes, sem os quais o processo de desumanização é inevitável. A primeira conseqüência, que não deixa de ser patológica, é a perda de sentido para a vida ou o alto grau de insatisfação com a mesma.
Sob este ponto de vista, pode-se apoiar-se na moral cristã quando a mesma afirma que a vida humana é ela mesma um valor que não pode, em hipótese alguma, ser violado. Vale também afirmar que não pode ser retirado do ser humano, pois a própria vida é um valor essencial, sem o qual deixa de ser o que é e não cumpre mais a sua condição de imagem e semelhança do criador. Esta afirmação é muito importante pois nos remete o dever de preservar a vida com todos os meios possíveis. Ela precisa ser defendida, especialmente quando vítima de desrespeito ou de tudo o que a coloca num valor abaixo de quaisquer realidades.
Entende-se, assim, que a consciência moral cristã jamais pode permanecer indiferente diante dos fatos ou circunstâncias históricas nas quais a vida humana sofre desprezo, exploração, marginalização. É triste a constatação de que os seres humanos são tratados de modo tão inferior ou igualados muitas vezes a bens tecnológicos e declarados descartáveis, pois só tem seu valor reconhecido quando produzem riqueza com eficácia e velocidade. Do contrário são dispensados como uma máquina ultrapassada no tempo ou incapaz de seguir determinado ritmo de produção. Para esta lógica, evidentemente perversa à luz da sã moral cristã, pouco ou nada tem importância se a pessoa excluída tem como garantir sua sobrevivência ou se está destinada à pobreza ou miséria absoluta.
Até quando os cristãos continuarão enchendo igrejas, grandes galpões ou estádios de futebol para “glorificar” a Deus, mas omitindo-se no compromisso profético de engajar-se nas iniciativas concretas e levantar a voz pela defesa e promoção da vida? Aqui vale lembrar o pensamento de Santo Irineu ao afirmar que “a glória de Deus é que o ser humano viva”. Assim sendo, como podemos glorificar a Deus em nossos templos quando a comunidade cristã nega-se ao compromisso sócio-transformador, fazendo a opção preferencial pelos mais pobres e fragilizados, seguindo o exemplo do próprio Senhor? É necessário que os cristãos, cada qual segundo seu estado de vida e vocação própria, integrem fé e vida, contribuindo na edificação de um mundo melhor.
O cristão não é um ser separado do resto da comunidade humana. Muitos afirmam que a sociedade é laica e que os valores sustentados pela fé não devem orientar os rumos da sociedade. Quem assim afirma talvez não se dê conta de que esta sociedade, que até pode ser chamada laica, é formada por seres humanos que tem em si, intrinsecamente, um sentido religioso, seja qual for. A religiosidade faz parte da constituição do ser humano, mesmo que este não professe uma fé determinada ou se negue a tal. Por esta e outras razões, jamais é prudente definir os rumos da sociedade humana sem levar em conta tão importante elemento humano e divino. Para os cristãos, isto significa deixar de reconhecer o valor da vida, pois ela é a mais evidente e verdadeira manifestação da glória de Deus. Em Cristo está a maior revelação de Deus, mas também a maior manifestação de humanidade quando o próprio Deus assume rosto humano na pessoa do Filho.
Honrar, respeitar, defender e amar incondicionalmente a própria vida e a vida dos outros constitui a maneira mais autêntica de expressar o mandamento do amor a Deus e ao próximo antes de tudo. O amor verdadeiro a Deus é aquele que impulsiona a pessoa ao encontro com o outro para amá-lo e defende-lo. Tendo diante de si esta meta, o cristão há de entender e garantir que tais princípios iluminem a ética humana e social, pois será na própria sociedade que ele encontrará o espaço vital necessário para desenvolver o seu ser cristão. Este espaço não lhe pode ser negado sob o pretexto de uma “sociedade laica”. É um direito inalienável, pois a vida entendida segundo a moral cristã é também uma realidade que não lhe pode ser impedida ou subtraída.
Portanto, o valor fundamental da vida humana, assim considerada para os cristãos, reside no valor transcendente da pessoa que a fé é capaz de expressar, levando ao compromisso que busca integrar todos os elementos constitutivos da mesma. Estes valores ou elementos, a saber os de ordem física, psicológica e espiritual, devem ser garantidos numa síntese unitária e prioritária, pois só assim são capazes de integrar efetivamente a pessoa na sociedade, de modo que esta integração garanta tudo o que precisa para viver com dignidade e qualidade. Este desafio é grande e indispensável para o cristão consciente. Não se pode mais retardá-lo. É preciso que os cristãos, vivendo sua fé na Igreja, continuem e estejam sempre unidos num grande mutirão pela vida, procurando meios concretos para, em suas comunidades, avaliar o contexto histórico, social e eclesial. Depois disso é necessário tomar as iniciativas necessárias para que o ser humano não se esqueça de si mesmo tendo em vista outras realidades, mas que estas sejam um meio que auxilie as pessoas a encontrar seu verdadeiro sentido e fim. E esta é uma questão vital.
Padre Marcos Radaelli

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